Viver numa aldeia pequena com verde até perder de vista, um rio e o chilrear de passarinhos é o sonho de muitos citadinos, cansados da azáfama ruidosa das cidades.
Eu vivo numa aldeia pequena desde sempre. Tenho a sorte de abrir a janela do quarto e ver uma natureza imensa, uma quantidade sísmica de vibrações de ar puro, de chilrear de pássaros, de correr de água. Posso sair de casa e dizer bom dia a pessoas que me conhecem desde que nasci e ainda me chamam pelo nome da minha mãe até, um minuto e trinta segundos depois, estar sentada no sofá da minha avó, a comer sonhos e rabanadas e a ouvi-la dizer constantemente que eu sou a moça mais bonita da freguesia, enquanto os sonhos e as rabanadas vão descendo até às ancas.
Tive sempre um enorme orgulho por ter nascido e crescido em Fonte Arcada. Conheço os caminhos e os lugares como as palmas das mãos e sempre fiz tudo para ajudar, à minha maneira, ao crescimento da terra: abdico de dias de férias para trabalhar em colónias, perco horas de estudo em reuniões, perco anos de vida em preocupações.
Mas o crescimento faz-se na cooperação com pessoas e, nos últimos tempos, as da minha terra, da terra que me viu crescer, tem-me desiludido de uma forma tão intensa que conseguiu destruir o encanto de Fonte Arcada.
Sempre soube que, num meio pequeno, as conversas giram em torno da vida alheia. As pessoas preocupam-se, 24 horas por dia, em atirar pedras, quando têm telhados de cristal. Acordam e adormecem a falar mal do vizinho e estou convencida de que nem nos sonhos interrompem a árdua tarefa de denegrir, gozar, humilhar e rebaixar quem, muitas vezes, não merece.
Hoje apercebi-me de que as pessoas de Fonte Arcada evoluiram. Agora, já não o fazem com os cúmplices e em segredo. Fazem-no descaradamente, no meio de dezenas de pessoas. Hoje, alguém gozou com o meu avô enquanto os restantes já não escondiam a gargalhada. Eu estava a um metro de distância, mas limitei-me a sorrir interiormente; eu sei que, nesta terra, rir dos outros serve para esconder as próprias fragilidades e dificuldades. É sempre mais fácil colocar a máscara do forte, do inabalável. Confere.
Os meus amigos de infância transformaram-se em desconhecidos, com quem a convivência é quase uma obrigação, porque nos separa uma freguesia dividida por uma cor política, um jogo de interesses em que as peças são cabeças que rolam, em que se faz batota sem pesos de consciência e o prémio é atribuído ao falsificador, que pouco mais tem do que a aparência das palavras com que se autovaloriza.
Fonte Arcada está cinzenta. E eu penso que, um dia, quando a avó, o avô, a prima São e a tia Glória já cá não estiverem, não vai sobejar mais nenhum motivo para ficar.
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