sábado, 31 de outubro de 2009

seis e vinte e nove

É cedo, muito cedo. O comboio das 6 e 29 é dos antigos, das janelas pequeninas. Não gosto, mas as janelas são inúteis a esta hora do dia ( da noite?).
As mulheres que entram em Recarei-Sobreira, exactamente três minutos depois de eu ter fechado os olhos, destroem qualquer vestígio do silêncio matutino; são tantas, falam demasiado alto e demasiado agudo. Conhecem-se todas umas às outras e sentam-se sempre nos bancos de quatro, umas perto das outras, para poderem discutir, durante os 37 minutos da viagem, sobre o que cozinharam para o jantar, as compras que fizeram, o preço do quilo do arroz, a vindima de 1987. Afinal, foi só durante os primeiros dez minutos, o resto do tempo é para falar da vida da vizinha.
A minha mãe vai comigo, mas já está mais habituada, às vezes acho que é ela a mais nova. Consegue manter um discurso coerente e até animado com uma amiga sobre as eleições. A esta hora, se eu abrir a boca, só vai sair disparate. Prefiro ficar calada com a cabeça encostada à janela, baba quase a escorrer, embrulhada de negro, com frio nas pernas.
O comboio das 6 e 29 é o meu maior trauma. O comboio das 6 e 29 faz-me pensar na vida.
Fechei os olhos, já não ouço as mulheres de Recarei, o discurso da minha mãe perdeu sonoridade. Estou desconfortável, esta viagem está a ser muito lenta.
E depois, o costume. A voz da minha mãe voltou a aumentar de tom e agora está a chamar por mim, chegamos. Merda de vida, adormeço sempre só em Campanhã.
Ajeito a saia, traço a capa. São 7 e 10 e atravesso os Aliados, já com um sorriso. O comboio das 6 e 29 ficou para trás. Afinal, a única coisa boa que tem é que voltou a trazer-me onde eu pertenço. A partir de agora, tudo faz mais sentido.

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