Li as 385 páginas de “ O amor nos tempos de cólera” numa semana, angustiada pelo pensamento de que teria inevitavelmente uma última linha. E só não li de um sorvo porque os pequenos (grandes) prazeres querem-se trincados aos bocadinhos, para retardar o final.
Florentino Ariza conheceu o amor da sua vida, Fermina Daza, quando a mocidade o chamava à aventura. No entanto, nem mesmo a oposição feroz do pai da dama ao romance platónico impediu a sua luta pelo coração dela. Escreveu-lhe tantas cartas que Fermina começou a empacotá-las ordeiramente dentro de caixas, depois de ler e reler, vezes sem conta, cada palavra apaixonada, cada folha impregnada de um sentimento tão altivo quanto verdadeiro. Fez-lhe serenatas com um violino à janela, enquanto cantava os versos que ele próprio compunha. O cliché fica completo com o Dr. Juvenal Urbino, médico famoso, um homem culto e activo, que luta pela erradicação da cólera e ganha Fermina, construindo um casamento feliz. Mas o amor de Florentino não desvaneceu nem sucumbiu, antes fortaleceu, mais na certeza do que na esperança, que um dia o coração da eterna amada seria seu, outra vez. Fornicou com centenas de mulheres e fez-se rico. Seguiu a vida de Fermina de perto e pensou nela todas as noites, até ao dia em que pôde tê-la, finalmente, nos seus braços. Tinham passado cinquenta e quatro anos onze meses e 3 dias.
Cada vez me convenço mais de que os Florentinos são uma espécie em vias de extinção. Já ninguém escreve longas cartas apaixonadas às Ferminas deste mundo, nem há violinos que toquem junto aos parapeitos das janelas, à espera de um simples sorriso. Acredito que haja histórias de amor verdadeiras, aquelas ao estilo novela mexicana da vida real, mas as formas de demonstração da paixão perderam a magia do antigamente. Hoje, é tudo demasiado fácil, sem graça e sem encanto.
A minha avó conta que teve de enfrentar a fúria da mãe para poder casar com o meu avô; a minha mãe tinha guardados numa caixa todos os postais que o meu pai lhe enviou, pelo correio, com poemas originais numa letra esforçada. E os meus pais moravam a cem metros um do outro. Infelizmente perderam-se as relíquias, porque o meu irmão resolveu recortá-los e oferecê-los à namoradinha da escola. Ele deve, com certeza, ser um dos poucos Florentinos que restam. Já eu, digo com lamento que nunca recebi uma carta de amor, nunca me fizeram uma serenata, nunca lutei por ninguém, nunca lutaram por mim; tenho para recordar e contar aos meus filhos dois e-mails com algumas frases parolas, comentários no hi5 e milhares de mensagens escritas, logo efémeras.
Imagino apenas a sensação incrível de abrir a caixa do correio, esconder o envelope debaixo do casaco e correr para um local seguro, ávida de sentir-lhe a textura, rasgá-lo com cuidado, cheirar o papel e ler lentamente cada palavra e cada frase, respirando em cada vírgula para retomar o fôlego, e ler nas entrelinhas e reler o texto vezes sem conta, embargada num sentimento delicioso, inexplicável. Que pena não ter nascido uns anos antes.
Os namoros de janela, que a muitos parecem desengraçados, são quanto a mim uma forma extremamente inteligente de alimentar a chama, porque serviam de aperitivo para os encontros clandestinos que se seguiam. A dificuldade de aproximação física, que hoje não existe, aguçava a saudade, o desejo de estar com a pessoa amada. Por consequência, esses encontros eram sempre intensos e verdadeiros.
O telemóvel, que deve ser a melhor invenção depois da roda (e da pílula, vá), é o big brother dos casais do século XXI. É vê-los, de cinco em cinco minutos, a mandar a sms para a cara metade : amr, tou no wc; xuxu estou a vestir a camisola; agora as meias xuxu; amt mt bebe”. Esta dependência doentia arruína toda a magia do reencontro. No fim do dia, já não têm novidades para contar, porque está tudo dito, foi tudo escrito.
A história de “O amor nos tempos de cólera”, que só faz sentido pela escrita incrível de Garcia Marquez, fez-me perceber tudo aquilo que se perdeu ao longo dos tempos nas relações. Hoje, já ninguém espera, já ninguém faz acontecer magia, já não há o romantismo que faz corar as maçãs do rosto e acelerar qualquer coração.
Florentino Ariza conheceu o amor da sua vida, Fermina Daza, quando a mocidade o chamava à aventura. No entanto, nem mesmo a oposição feroz do pai da dama ao romance platónico impediu a sua luta pelo coração dela. Escreveu-lhe tantas cartas que Fermina começou a empacotá-las ordeiramente dentro de caixas, depois de ler e reler, vezes sem conta, cada palavra apaixonada, cada folha impregnada de um sentimento tão altivo quanto verdadeiro. Fez-lhe serenatas com um violino à janela, enquanto cantava os versos que ele próprio compunha. O cliché fica completo com o Dr. Juvenal Urbino, médico famoso, um homem culto e activo, que luta pela erradicação da cólera e ganha Fermina, construindo um casamento feliz. Mas o amor de Florentino não desvaneceu nem sucumbiu, antes fortaleceu, mais na certeza do que na esperança, que um dia o coração da eterna amada seria seu, outra vez. Fornicou com centenas de mulheres e fez-se rico. Seguiu a vida de Fermina de perto e pensou nela todas as noites, até ao dia em que pôde tê-la, finalmente, nos seus braços. Tinham passado cinquenta e quatro anos onze meses e 3 dias.
Cada vez me convenço mais de que os Florentinos são uma espécie em vias de extinção. Já ninguém escreve longas cartas apaixonadas às Ferminas deste mundo, nem há violinos que toquem junto aos parapeitos das janelas, à espera de um simples sorriso. Acredito que haja histórias de amor verdadeiras, aquelas ao estilo novela mexicana da vida real, mas as formas de demonstração da paixão perderam a magia do antigamente. Hoje, é tudo demasiado fácil, sem graça e sem encanto.
A minha avó conta que teve de enfrentar a fúria da mãe para poder casar com o meu avô; a minha mãe tinha guardados numa caixa todos os postais que o meu pai lhe enviou, pelo correio, com poemas originais numa letra esforçada. E os meus pais moravam a cem metros um do outro. Infelizmente perderam-se as relíquias, porque o meu irmão resolveu recortá-los e oferecê-los à namoradinha da escola. Ele deve, com certeza, ser um dos poucos Florentinos que restam. Já eu, digo com lamento que nunca recebi uma carta de amor, nunca me fizeram uma serenata, nunca lutei por ninguém, nunca lutaram por mim; tenho para recordar e contar aos meus filhos dois e-mails com algumas frases parolas, comentários no hi5 e milhares de mensagens escritas, logo efémeras.
Imagino apenas a sensação incrível de abrir a caixa do correio, esconder o envelope debaixo do casaco e correr para um local seguro, ávida de sentir-lhe a textura, rasgá-lo com cuidado, cheirar o papel e ler lentamente cada palavra e cada frase, respirando em cada vírgula para retomar o fôlego, e ler nas entrelinhas e reler o texto vezes sem conta, embargada num sentimento delicioso, inexplicável. Que pena não ter nascido uns anos antes.
Os namoros de janela, que a muitos parecem desengraçados, são quanto a mim uma forma extremamente inteligente de alimentar a chama, porque serviam de aperitivo para os encontros clandestinos que se seguiam. A dificuldade de aproximação física, que hoje não existe, aguçava a saudade, o desejo de estar com a pessoa amada. Por consequência, esses encontros eram sempre intensos e verdadeiros.
O telemóvel, que deve ser a melhor invenção depois da roda (e da pílula, vá), é o big brother dos casais do século XXI. É vê-los, de cinco em cinco minutos, a mandar a sms para a cara metade : amr, tou no wc; xuxu estou a vestir a camisola; agora as meias xuxu; amt mt bebe”. Esta dependência doentia arruína toda a magia do reencontro. No fim do dia, já não têm novidades para contar, porque está tudo dito, foi tudo escrito.
A história de “O amor nos tempos de cólera”, que só faz sentido pela escrita incrível de Garcia Marquez, fez-me perceber tudo aquilo que se perdeu ao longo dos tempos nas relações. Hoje, já ninguém espera, já ninguém faz acontecer magia, já não há o romantismo que faz corar as maçãs do rosto e acelerar qualquer coração.